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(...) somos apenas o que somos, mas, por vezes, o que somos não é o suficiente nem mesmo para nos agradar.

Temos que ser mais, se quisermos conquistar aquilo que nos falta... óbvio, isso porque, se nos falta algo externo, é porque falta algo na gente mesmo para obtê-lo. Temos de nos tornar melhores do que nos apresentamos e, por conseguinte, abandonar a nossa singularidade e nos fragmentar, se quisermos preencher o vazio que nos aflige. Temos que ser mais, mas... nunca diferentes essencialmente, pois é importante que sejamos capazes de nos reconhecer.

 

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Um homem esta caminhando no acostamento de uma estrada e se sente vazio... solitário. Como um câncer, as células putrefatas da memória parecem se deteriorar a cada novo passo. Ele tenta curar a si mesmo, relembrando-as, mas sabe que parte delas já se foram para sempre... Talvez se as tivesse relatado a alguém ou as registrado num papel de pão, que seja... mas se foram.

Ele está vazio de momentos, solitário, como se a vida fosse apenas um acrescento de zeros depois da vírgula e a ponto de suas recordações se confundirem com suas fantasias ou desejos.

Porém, a noite o recebe, o envolve, enquanto o vento úmido parece abraçá-lo. A lua ilumina o que pode ser visto da estrada adiante, estrada que, há muito, tem sido seu caminho. Seus pés são como hastes firmes no asfalto e seus olhos, como o infinito oceano, misterioso, profundo e incerto. As cordas do seu violão jazem enferrujadas, enquanto a melodia parece ter se esvaído de suas mãos desacostumadas.

- Onde estará ele? ‚Äî perguntei certa vez em que se armava uma tempestade.

- Onde estará ele...? ‚Äî me perguntaram tanto tempo depois, em que não mais se tinha notícias...

- Onde está ele? ‚Äî certo dia ela me perguntou... tarde demais.

As noites sempre foram convidativas, ao meu ver, mas, sem ele, parece que se tornaram mais solitárias.

Sinto saudades do meu amigo, sinto saudades da sua euforia e das suas músicas... Sinto falta dos momentos de êxtase, adocicados com certa melancolia e pequenas doses de mistério... A melancolia, entretanto, se foi. Hoje, o que me resta é sentar na velha poltrona onde ensaiávamos velhas canções que nunca chegamos a tocar ou encostar no barco que ainda descansa na areia da praia onde costumávamos ter longas conversas, me deleitar em recordações as quais ainda não me abandonaram... para o bem ou para o mal.

Outrora a vida era como um conto de fadas medieval, em que cavaleiros brandiam suas espadas, erguiam seus canecos e cantavam poemas sobre amores impossíveis. As donzelas ainda podiam ser encontradas nas torres de castelos suntuosos, tecendo cavalos alados em tapeçarias finas e entoando velhas cantigas, inexprimíveis em palavras atuais. Ele, do seu modo singular, era capaz de transformar um simples olhar entre dois amantes, na maior história a qual se poderia querer viver.

Lembro de um momento... era o início da primavera, época em que as paixões desabrocham nos corações, tempo de deixar um pouco de lado nossos pesados fardos, para nos perder nas estradas íntimas e sinuosas que se escondem nos pensamentos secretos... Próprios ou de outrem...

‚""Quero sentir sua alma, antes de permitir que a realidade interfira. - ele disse a ela, antes de beijá-la - Viva por um momento a sensação de estar sonhando um sonho bom... só um pouquinho que seja. Sinta algo que meu corpo jamais poderá lhe dar, e me deixe tocar algo aonde jamais um beijo poderá alcançar. Deixe-me ter a certeza de que a vida lhe roubou dos meus sonhos para te trazer a mim...‚"".

Por quase um segundo, de relance, volto os olhos para a gata que dorme em meu colo enquanto escrevo... de súbito, sou tomado pelo pensamento de que, um dia (como o dia de hoje), ela irá morrer e, tal como está de olhos fechados agora, estará um dia, num decorrer de momentos que se esgota pouco a pouco, como areia numa ampulheta...

Um relógio , atrás de mim, gira seus ponteiros mais acelerados que eu gostaria...

Chorarei, como sempre, pelos cantos, pelo vinho desperdiçado... chorarei por ela e custarei a jogar suas coisas fora, mas de sorte o farei. ‚""Não deixe os dias passarem‚"", diz a canção... Tudo está em paz agora... Porque tem que ser diferente? O tempo é a nossa maldição e ignorá-lo tem seu preço.

Penso no porquê de não tocar essa música ainda, enquanto a escuto... Talvez seja porque poucas pessoas a conheçam, mas é sabido que não costumo fazer nada para agradar ninguém: nem tocar, tampouco escrever, como pode ser constatado diante desta prédica distorcida e inconstante.

https://www.youtube.com/watch?v=Iosx6flOj98

 

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