A delicadeza da despedida
A música que ouço me traz memória do século passado, do presente recente. Conheço a letra de tantas repetidas vezes que a ouço. Chico Buarque. Quando adquiri um toca-discos, era jovem, renunciando à adolescência precocemente, e rodava o vinil. O artista era uma das minhas paixões platônicas. Colocara na parede do meu quarto um poster que subtraí de uma revista de fotonovela.
Hoje uso “bluetooth” e ouço a partir da plataforma digital. Ele, o artista, tem cabelos brancos, mas ainda encanta. Seus temas são atemporais. A paixão virou admiração. Gosto de pensar que penso como ele encanta. O seu canto empresta voz em muito do que acredito.
Enquanto tomo café, ouvindo a música, assisto a astromélia branca se despedindo lentamente. Penso na morte. Na finitude de tudo, inclusive nas desmemórias que me protegem do caos, as quais me permito.
A flor ornamentou meu recanto por mais de uma semana, mas agora fenece. É seu tempo.
Costumo conversar com flores, plantas e bichos. Todos têm sua própria linguagem. Na imagética, sou na mesma espécie.
A astromélia se mostra delicada até na despedida. Diante do meu olhar cai uma pétala e outras resistem ainda um pouco mais. Sofro um tanto a cada despedida. Sei que chega a hora de tirar a água do vaso e juntar o que restou para jogar fora. Ela sai do cenário.
Generosamente, iluminou a casa, sobreviveu ao calor da estação e ao corte do pé. Parece conhecer sua função e a hora de despedir-se. Vejo no cair da sua pétala um quase sorriso de descanso.
Embalada pela música, ela e eu, sabemos haver uma linha da vida. Não há uma linha reta que liga um ponto a outro, como ensina a cartesiana matemática. Uma linha de picos e vales. Um intervalo entre o nascer e o morrer, onde renascemos muitas vezes irrigados pelas águas da vida, enquanto a despedida tarda.
A lição é a Delicadeza.
Gratidão por tanto.
Maria Luiza Kuhn
Fevereiro 2024