Ele havia chegado ao fim do dia, Sentou-se no balcão de madeira gasta, enquanto as mesas ainda permaneciam vazias e o silêncio preenchia o espaço como um velho conhecido. Pediu uma garrafa mediana — um vinho rude, feito de uvas locais e promessas frustradas. Era o que tinha. Serviu-se em silêncio, enquanto o barman seguia seu destino, limpando as marcas de copos do dia anterior, como se apagasse rastros de outras vidas.
Da mochila surrada, o homem retirou um bloco de notas. Começou a escrever algo indecifrado. O importante, ao observador, era apenas o gesto: a escrita como ritual, resistência silenciosa ao tempo.
Foi então que uma mulher desceu a escada que dava acesso ao piso superior. Trazia nos passos a leveza de quem já conhece a rotina. Cumprimentou o barman pelo nome e, notando o vazio ao redor, comentou sobre a ausência de alguns funcionários, olhando para um velho relógio na parede. O homem nada respondeu, apenas retornou aos seus afazeres.
A mulher, aparentando seus cinquenta anos, notou o homem no balcão. Mochila grande, postura concentrada, olhar ausente. Sentou-se ao lado dele e perguntou, com sotaque carregado, sobre o vinho que bebia.
— Já tomei melhores — respondeu, com um sorriso discreto. — Mas é o que o dinheiro permite.
— Não é daqui, né?
— Vim do ocidente... umas centenas de milhas.
— Perdido?
— Em movimento.
Ela sorriu. — Desculpe o incômodo. Fique à vontade.
Enquanto ela alinhava cadeiras, ele virou-se de lado, afastou o bloco e ofereceu-lhe um caneco de vinho.
— Não costumo beber com clientes. Mas ainda está cedo e parece que não aguarda companhia...
O barman serviu outra dose.
— Você é escritor? — ela perguntou, indicando o bloco.
— Não publicado. Mas escrevo tanto, que me considero um.
— E sobre o que escreve?
— Sobre momentos. Sobre a vida vista por um homem que não se acostumou com o mundo. Coisas sem importância... ou com toda a importância do mundo.
— Tem alguma boa história? Algo que explique sua vinda até aqui?
Ele sorriu de lado.
— Tenho. Não é longa. Talvez dure o tempo dessa garrafa.
— Pois bem...
— Começo com “Era uma vez”?
— Sim. Sempre gostei de histórias que começam assim.
Ele girou o caneco entre os dedos.
— Era uma vez...
A história dentro da história
Uma pedra, há milhões de anos, existia em silêncio — indiferente ao tempo, ao vento, ao mundo. Apenas era. Até que, um dia, seus olhos sem olhos viram algo inédito: um pequeno broto, frágil e insistente, lutava para romper o solo.
Movida por uma empatia que desconhecia possuir, a pedra desejou ajudar. E assim, decidiu se fragmentar... Permitiu que seus pedaços, antes firmes e impenetráveis, se tornassem base e alimento para aquele ser pulsante.
Na sua entrega, a pedra descobriu que até o mais sólido dos corpos pode florescer… se souber ceder.
O broto cresceu, absorvendo os minerais da pedra. A planta nasceu. E agora a pedra era parte da planta.
Veio a chuva, o vento, o calor. Vieram os animais, que se alimentaram dela. E a pedra, agora, era também fera. Sentiu dor, instinto, prazer, medo.
Até que, certo dia, um homem comeu da carne da fera. E ao se nutrir, carregou consigo todo esse ciclo: a pedra, a planta, o bicho, o mundo.
E então, a pedra gritou.
Não foi um grito qualquer. Era um urro de consciência. Pela primeira vez, ela se soube viva.
Fim da história... mas não do conto.
Ela bebe em silêncio.
— Isso está no seu caderno?
Ele assente. — Algo assim. E continua:
— Tal qual a planta se nutre da pedra, o homem se nutre da planta e do animal. Carrego em mim tudo: a paciência da pedra, a sensibilidade da planta, o instinto do animal. Sou a brisa que antecede a noite. Logo escurecerá... e eu não estarei mais aqui.
Ele toma o último gole, deixa uma nota sobre o balcão e uma moeda para o barman. Parte, deixando apenas a ausência.
Atrás de si, um bloco com uma página em branco. E o vinho, ainda rubro, como uma lembrança quente de que tudo aquilo, por um breve instante... existiu.