Recorte de cenários.

A ladainha rezada, em intermináveis contas do rosário, nas novenas da vizinhança

As carpideiras que emprestam Lágrimas, em algum velório, que sempre parece um despropósito, mesmo que indubitável.

O coaxar dos sapos em noites escuras. O anúncio da tempestade. Um céu que escurece de repente.

Pirilampos que ignoram o espaço-tempo e o clima, brincam no que restam de pradarias, no mais absoluto silencio luminoso.

Os passarinhos do crepúsculo, trocando confidências em idiomas diversos.

Alguns gaiteiros desafinados brincam de magos de Natal, anunciando a chegada do sempre chamado “salvador”. Aventuram-se em visitas e batem palmas às portas de receptivos moradores do vilarejo.

Há luzes coloridas na matriz, enfeitando a torre. A noite é morna no hemisfério sul. Crianças jogam bola na rua. Cães amigos e soltos, latem para algum passante.

Ninguém parece perceber o tempo que de alguma janela invisível tudo vigia e sem tréguas roda sem parar. Ninguém ousa agarrar o sino que badala implacável a cada hora, para pedir: “Pare um pouco, por favor”. Vamos saborear com vagar estes momentos. Pode até atrasar um dia ou mais.

Cenários, justapondo efemérides.  As mais prosaicas, as mais improváveis, as mais tecnológicas. No vilarejo, no bairro, na metrópole.

Enquanto isso há quem perde o voo. O ônibus ou o trem. Há quem brigue no trânsito e na porta do shopping. O templo do consumo também está iluminado. Cheio de apelos e papai noel que veste roupas trazidos de algum arquétipo gelado.

Há crianças que não jogam bola, mas suplicam nos sinaleiros por algum trocado para a refeição que não terão hoje, quiçá amanhã sequer.
Há cães sarnentos chutados nas ruas, como há também seres humanos dormindo embaixo de alguma marquise. Nossa tola e absurda capacidade de subestimar a dor alheia não esmorece.

Buzinas, presentes, makes e pressa. Algumas rezas e alguns bem dizeres. Tentativas de recompor desafetos, como se a época, por si só produzisse mágica, aliás, é assim denominada.

Muito despertam para a solidariedade e doam: alimentos, brinquedos e por vezes algum afeto.

Recortes que compõe cenários. E o tempo, o bem mais precioso, espiando mudo e surdo, o que poderia sussurrar em sons inaudíveis?

Logo, logo mais um ano se iniciará, virando a página no calendário gregoriano

e todos diremos: Feliz ano novo

E todos, em nossos cenários, o que faremos?

O tempo, ah, o tempo continuará rodando implacável.

 

 

Por Maria Luiza Kuhn

dez 2023

Imagem: Google