Um nome sem rosto.

O nome dele é João. Mas poderia ser Gilmar ou Ariel, ou Danilo.

Enviou-me uma carta. Caligrafia bem desenhada. Aquele pingo de bolinha nos is, uma coisa meio perturbadora. Por que alguém realiza aquela bolinha tão caprichada em cima de cada i?  A paixão pelas palavras faz ebulição em mim e amanhece as mais tresloucadas fantasias.

Estamos em tempos digitais e a missiva chega pela “rede”. Escaneada. Tem assinatura. Não tem rosto. Sinto falta de todos os outros sentidos. Porque além de gostar muito das palavras, sou tocada pela sinestesia. Me faltam o tato e os cheiros.

Sinto falta principalmente do olhar. O que este João poderia revelar além da carta? Que cor terão seus olhos? Qual o formato de suas mãos? O que me diria a sua voz? Contar-me-ia sua história? O que anseia sua alma?

É uma via epistolar que não tem a resposta. Via única. Apenas posso dar um modesto parecer sobre sua escrita.

Minha sede vai além, muito além.

João me conta por que mesmo você está numa unidade prisional? Você tem mãe? Tem filhos? Por que você escreve com esta caligrafia tão caprichada e o pingo redondinho em cima de cada i?

O que te inspirou a escrever a carta para mim? Na carta você conta que leu a obra de Aloísio de Azevedo. Escreveu tão bonito que bebi cada palavra como se estivesse eu a ler a narrativa outra vez. Em cada linha queria enxergar mais. Ouvir as batidas do teu coração enquanto escrevia, enquanto pensava sobre o tempo em que o escritor descrevia (em 1890), o que ainda acontece em 2023, mudando apenas paisagens, quiçá mais violentas.  Ligaste o incêndio do Cortiço à época, com a falta de cuidado ao meio ambiente, presentemente. De forma sutil. Quanta sensibilidade senti. Confesso João: meus olhos se encheram de um mar de reconhecimento no humano melhor que intenciono ser a cada dia.

Mande seu novo endereço. Aguardo em breve.

Far-me-ia feliz poder responder sua carta e poder enxergar seus olhos.

Maria Luiza/agosto de 2023 — após ler e emitir um parecer sobre Remissão de Pena em programa de pessoas privadas de liberdade do Governo de São Paulo, quando as pessoas fazem leituras e resenhas dos livros indicados. A literatura pode salvar. É um direito de todos.