Era uma vez...
Um menino curioso — de olhos atentos e fala abundante — que vivia numa casa onde as palavras tinham cheiro de tinta e som de pena riscando o papel. Seu pai, um homem com alma de escritor, colecionava canetas... daquelas antigas, com corpo de metal, pena afiada e tinta que parecia ter alma.
Um dia, o menino apontou para uma das canetas no alto da estante e perguntou:
— Pai... posso ter uma dessas?
O pai o olhou com atenção e cenho franzido... num tom que carregava mais do que um simples “sim” ou “não”. Era o tipo de olhar que precede uma profunda reflexão.
— Certamente... Mas só quando estiver pronto para empunhá-la como um cavaleiro.
— Mas... ela é só uma caneta — disse o menino, franzindo o cenho.
O pai olhou novamente para filho e respondeu, com firmeza:
— Ela parece só uma caneta. Mas, nas mãos certas, torna-se uma espada. Escritores não escrevem apenas... eles encantam, desafiam, desbravam, duelam com as palavras e às vezes até salvam. A pena, é a espada dos que lutam com ideias. E, para usá-la com honra, é preciso treino, paciência... e coragem.
— Coragem pra quê?
— Coragem para melhorar. Para enfrentar seus próprios monstros. Para se colocar no papel com verdade. Para continuar mesmo quando os outros o derrubarem. Coragem para persistir... mesmo quando o fim da história parecer longe ou perdido. Se você treinar sua escrita, se a fizer com beleza, arte e dedicação — como um bom espadachim que afia cada movimento — então, essa caneta será sua. E não como um presente... mas como conquista.
O menino assentiu, com o brilho da promessa vindoura...
E assim, os dias se passaram.
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A Jornada
Nos primeiros dias, o menino se irritou.
As letras saíam tortas, o “a” parecia um “o”, o “s” se enrolava como uma cobra tonta, e o “m” se perdia fora da linha. A folha se enchia de borrões, e a tinta escorria como lágrimas no papel.
Às vezes, o papel rasgava. Outras, sua mão tremia. Mas ele persistiu. Mas ele persistiu.
Todo dia, assim que o sol surgia, ele se sentava diante do caderno como um escudeiro diante de seu treino. Empunhava a caneta como se fosse uma pequena espada, e ali, em silêncio, treinava seus golpes. Uma letra por vez. Um traço por dia. Mesmo quando errava. Mesmo quando ninguém via.
Com o tempo (horas, dias, meses), algo mágico começou a acontecer.
Seus cadernos, antes desordenados como ruínas de batalhas esquecidas, passaram a ganhar contornos de arquitetura delicada. Os rabiscos, antes caóticos, começavam a lembrar — ainda que timidamente — cartas antigas, daquelas que carregam histórias. As letras, que antes se atropelavam, agora marchavam em fileiras suaves, como soldados num desfile cerimonial. A escrita, outrora trêmula e vacilante, parecia enfim ter encontrado seu próprio compasso — como se, aos poucos, reconhecesse o som da alma que a guiava.
Até que, certo dia, o pai entrou no quarto e encontrou uma folha solta sobre a escrivaninha. Nela, repousava um poema sobre um navio, sobre viagens… Não era longo, tampouco elaborado — mas havia algo de verdadeiro ali. O mar e seus mistérios, desenhados em palavras simples, pareciam conter mais do que versos: guardavam magia, esperanças… de um coração que começava, assim como as frases, a encontrar sua forma e direção.
Como prometido, o pai lhe entregou sua conquista. Entretanto, ao receber o objeto tão almejado, o semblante do filho não traduziu a alegria esperada. Em vez do acalento, encontrou apenas o silêncio melancólico de uma jornada que se encerrava — e, com ela, o desassossego de uma nova folha em branco, ali, repousante e diante dos seus olhos.
A caneta, antes símbolo de desejo, agora repousava em suas mãos como um presságio silencioso: já não era mais o menino que apenas seguia histórias alheias… Tornava-se, enfim, aquele que daria vida às suas próprias — histórias que, quem sabe um dia, outras crianças gostariam de ler.
Foi nesse instante que compreendeu — com a inocência perplexa de quem começa a enxergar o tempo que existe depois do “felizes para sempre” — que é a jornada quem molda o sonho, e que um homem sem propósito é apenas uma alma à deriva… como um navio sem leme, entregue aos ventos incertos do acaso.
E ali, diante do branco ainda intacto da próxima página, soube que o maior desafio não era conquistar a caneta… mas escrever, com ela, uma vida que valesse ser contada.
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Epílogo
E foi ali, com a caneta em mãos, que o menino compreenderia que já não era mais o mesmo menino perdido nas histórias dos outros. Já não seria apenas aquele que sonhava com heróis distantes ou mundos inimagináveis… Mas, tal como na vida, tornar-se-ia o autor da própria travessia.
Entenderia, em silêncio, que um dia tomaria as rédeas das suas histórias — não apenas para escrever algo bonito no papel, mas para esculpi-la com escolhas, com vivências, com despedidas… com coragem. A sua própria história.
Talvez se desse conta, ali mesmo, de que, como tantos que ousam viver profundamente, um dia ele próprio não voltaria pra casa. Porque há um tempo — sutil, quase imperceptível — em que deixamos de esperar pelos finais felizes… para, enfim, começarmos a construí-los à nossa maneira, com suas imperfeições, com seus riscos.
E mesmo que um dia decidisse arriscar em retornar à velha rua, ao portão de sempre, à casa que um dia chamara de lar… perceberia, num suspiro silencioso, que nada ali seria mais o mesmo. Nem as pessoas. Nem o lugar. Não porque tudo tivesse mudado — mas porque ele mesmo teria mudado.
Seus novos olhos, amadurecidos pela travessia, captariam nuances invisíveis que, outrora, a infância ainda não podia alcançar. E, nesse instante, como num paradoxo inevitável, sentiria saudade da lente da inocência… aquela que tornava o mundo mais colorido, mais mágico — como só uma criança é capaz de ver.
Seria então que compreenderia, enfim, que crescer é isso: seguir adiante, mesmo carregando saudades de um tempo em que tudo parecia possível… e nada doía tanto, como a despedida de cada momento bem vivido.
Como nas Canções da Experiência, de Blake, descobriria que o verdadeiro encanto não está apenas no que se lê — mas no que se vive. E assim seguiria. Não mais como um menino, mas como alguém que agora sabe: um bom escritor precisa reconhecer o momento certo de fechar até mesmo a mais bela das histórias.
As coisas são o que são — e assim sempre serão. Quanto à caneta… do início ao fim, foi sempre a mesma. Mas foi o sentido que ele lhe atribuíra — o valor que nela depositara enquanto ainda menino — que a tornara preciosa, mágica… impagável.
Mas isso… isso é algo que, quem sabe, um dia ele mesmo venha a lhes contar.