"

Aperte o play...

‚""Descobri que o amor era mais que apenas um jogo. Você está jogando para vencer, mas perderá do mesmo jeito‚"" (Gary Moore - Still got the blues)

(Diário de um viajante)

Deveria ter te escutado, amigo... No momento em que ousei me virar, desviando minha atenção da (inócua) meia garrafa restante de malbec que jazia no balcão, para atestar que a doce voz entoada com tanto calor, efervescência e impetuosidade, ainda poderia ser sobrepujada por um olhar sombrio e maculado que qualquer homem desejaria, mas poucos são capazes de desbravá-lo sem perderem a si mesmos pelo caminho.

- De que adianta? ‚- perguntei équele que me servia chá enquanto, entre o cão e o lobo, a luz vacilante do Sol poente parecia se apegar é minha avidez tal qual o artista ao pecado.

- De que adianta? ‚- perguntei enquanto pagava o pequeno e amargo café num restaurante beira-de-estrada antes de continuar a percorrer as dezenas de milhas restantes para alcançar o resquício de memória requerida, com palato de excitação, paixão e remorso.

- De que adianta? ‚- para meu próprio reflexo melancólico no retrovisor pouco depois de transpassar o limite da cidade.

Era tarde da noite enquanto cruzava, o que antes eram conhecidas, as mesmas ruas após tanto tempo (que nem me lembro mais). No caminho, o mesmo que percorri por tantas noites (e dias), não mais encontrei qualquer tipo de lembrança que pudesse remeter a ela: o antigo café havia cedido lugar a um supermercado e a velha estação de trem onde costumávamos nos encontrar, como um cemitério, apenas servia de depósito para antigos vagões carcomidos pelo abandono assim como minhas memórias.

O telefone, escrito com caneta vagabunda num guardanapo barato e um codinome, era o último vestígio que tinha como evidência das noites vadias onde o cigarro queimando e garrafas espalhadas se tornavam os únicos (fora ela) companheiros de horas sombrias.

Percebi que minhas preciosas recordações haviam sido escritas em folhas de cadernos... Aquelas que, com o tempo, jogamos fora. Negligenciei minha própria história e, no momento em que descortinei as marcas das idades reivindicando os espaços entre a minha pele, conferi lamentavelmente que não sou nada além do que posso me lembrar (quase nada).

Decidi que era o momento de visitar meus fantasmas antes que me tornasse um... Ela havia me prometido que nesse mesmo dia (do último adeus) durante todos os anos em que ainda se lembrasse de mim (que segundo ela, seria sempre), estaria lá, sentada no balcão assim como eu (que havia prometido, no momento certo, voltar para buscá-la), no presente em que desconsertadamente a conheci.

‚""Tanto tempo, foi há tanto tempo... Mas ainda fico triste por você‚"". À direita, numa rua central escura, a carne já estava exposta enquanto alguns beberrões, incapazes de diferenciar um poste de um ‚""vaso‚"", vociferavam encantamentos vis ao mesmo tempo em que se lamentavam, indignados e ignorados, vivendo da caridade de quem, no fundo, os odiava. O céu estava aberto e uma Lua tímida minguava enquanto o cheiro das Damas-da-noite invadia o interior do meu carro... Estava próximo do lugar, meus sentidos aguçavam e me indicavam o velho e conhecido estacionamento.

As únicas ""coisas"" imutáveis nos homens são suas paixões. Era o mesmo bar; o mesmo nome; as máquinas de flipper e a velha jukebox que, imediatamente, após uma moeda, solicitei ‚""Still got the blues‚"" e pensei enquanto reivindicava meu lugar junto ao balcão sentando em um banco com estofado queimado de cigarro: ‚""Deveria ter te escutado, amigo!‚""...

Lá estava eu, recobrando minha dose de velhas lembranças e aguardando sabe-se lá o que (ou quem), em algum lugar no passado, imaginando quantas histórias haviam se passado durante minha ausência... Quantas belas histórias que jamais seriam contadas, morreriam ou desapareceriam assim como aquela que, por pouco, não me escapou.

***

Após algumas horas e uma garrafa e meia, o que me resta é apenas a lembrança de que estive ali, e o deleite amargo do cigarro que fumei após tantos anos. Devo ter gastado uns três guardanapos escrevendo sobre o que me lembrava dela, sobre ""seus olhos melancólicos e maculados sobrepujados por sua voz calorosa e impetuosa que podiam fazer com que homens se perdessem dos caminhos de suas casas"" (não me lembro direito se era essa a ordem, tampouco, para ser honesto, do seu rosto).

Verdade seja dita, nem mesmo me lembro se seus olhos eram castanhos ou cor-de-mel. Guardo apenas recortes das noites enquanto ainda estava sóbrio... E do que jamais sentiria novamente mas daria tudo para sentir apenas mais uma vez. Mas estou certo de que escrevi da forma como deveria, e assim os deixei (os manuscritos) sobre o balcão: junto ao que sobrou do vinho; das promessas não cumpridas; da miserável gorjeta; dos ossos de frango juntos a um cigarro no cinzeiro.

Após recobrar minha consciência, retornando para a estrada junto ao Sol nascente, não me lembro de pensar em mais nada... Pararia ainda uma última vez para tomar um pequeno café amargo de beira-de-estrada e, finalmente lembraria do seu rosto assim como, logo, esqueceria para sempre e, tal qual os poetas pagãos, permaneceria vivendo como Pagliacci: escarnecido em minhas próprias prédicas e testemunhado apenas pelos olhos da minha infâmia.

https://www.youtube.com/watch?v=QvwbtILwNis

 

"