pura teimosia

Por pura teimosia

Eis ‚-me aqui, num janeiro qualquer, ou já seria fevereiro?

Porque sigo um calendário gregoriano, digo que já adentramos o século 21 há alguns anos.

Gênios sagrados da música erudita continuam a convidar meu coração para dançar valsas vienenses, passear em quatro estações, viajar noturnos sonhos. Me trazem notícias de séculos passados.

Livros habitam minha pequena biblioteca (bem que a queria enorme). Alguns autores pesam, outros são mais leves. Os vivos e os póstumos. A maior parte, creio, são poetas, felizmente.

O tempo presente requer tecnologia. Temos notícias urgentes. ‚"Posts‚" ditos inconsequentes. Opiniões vazias e cheias de ‚"fealdades‚". Arrogâncias destiladas de ódio, verdades e conhecimentos absolutos, como se de repente todos tivéssemos defendido teses de doutorados em todas as áreas, inclusive nas mais complexas ciências. Leis, então, todos passamos a conhecer profundamente.

Lemos notícias da peste atual. Brincamos com as recomendações sanitárias e nos infectamos. E assim morremos a cada dia um pouco mais. ‚"A Peste‚" de Camus me espia da prateleira. A doença que assola os seres ‚"apolíticos‚" sangra como ferida aberta, manchando um bando de cá e de lá como se todos desaprendessem a pensar a cada dia. O Príncipe de Maquiavel continua na estante. Deve estar gargalhando de algum distante lugar.

As guerras e os genocídios que viraram literatura nos contam da crueldade física da tortura de corpos, gentes e nações. Nos causam arrepios e compaixão. Estão no passado.

Hoje, a guerra é mais sutil. A crueldade é plantada na mente, no coração e no sentimento do homem. Utilizamos, (nós os seres humanos) o sagrado poder da palavra para amaldiçoar e magoar o semelhante. (Que semelhante?) Alimentam em nós o desgostar de tudo. Desaprendemos a compaixão porque é no presente. E assim, perigosamente, vamos perdendo a esperança. E a fome? A guerra que jogamos para longe dos nossos olhos todos os dias.

Enquanto isso, a quinta sinfonia continua a tocar. A poesia continua a existir, por pura teimosia.

E eu, sobrevivo, acreditando no ser humano. Também por pura teimosia.

By MLK 2021