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O cair da noite trazia a reviravolta da estação, em que as folhas se entregam ao chão. Uma garoa fina começava a tombar quando o viajante empurrou a porta pesada e entrou no bar. Estava seco ainda, mas o ambiente parecia pronto para acolhê-lo e molhar suas palavras.

Deixou a mochila pesada no banco ao lado do balcão. Atrelado a ela, um pequeno aquário em forma de lamparina, dentro do qual nadava um peixe vermelho. Chamava-o de Destino. Com cuidado, desatrelou-o e o colocou sobre o balcão.

O barman, de olhos pouco gentis, aproximou-se.

— Animais não são permitidos aqui... — disse, apontando para o cartaz na porta. — Mas abrirei uma exceção. Esse parece... inevitável.

— Destino não incomoda. Ele não causará problemas.

— Vai querer o de sempre?

O viajante o encarou, surpreso:

— Nunca estive aqui antes. Esse lugar me soa familiar, mas tenho certeza de que jamais vim aqui.

O barman soltou um sorriso de canto de boca.

— Deixe de ladainha. O primeiro é por minha conta. A partir do próximo, paga com o que tiver.

O homem assentiu.

— Aceito.

O copo pousou no balcão, e o silêncio pesado caiu entre eles.

— E o que carrega de tão pesado nessa mochila? — insistiu o barman.

O viajante suspirou e olhou para a mala, como se só naquele momento sentisse seu peso.

— Histórias...

— E para o peixe?

— Para Destino... apenas artemias. Vivas.

O barman fez um gesto enigmático com a mão. No mesmo instante, uma jovem desceu as escadas do piso superior. Seus cabelos dourados caíam como um sol poente outonal. Passou por ele, esbarrando em seu braço, o mesmo que segurava seu copo, derramando algumas gotas de bebida sobre sua camisa úmida. O viajante, entretanto, não olhou para a mancha: seus olhos ficaram presos ao corpo que se afastava, sinuoso e distante como uma promessa.

— Eu a conheço... — murmurou.

— Sim — respondeu o barman. — Já foi sua... e de outros, sem dúvida. Esqueça-a.

— Acha que não sou capaz de ter sua atenção?

O sorriso do homem atrás do balcão foi seco, debochado.

— Não é questão de interesse, filho. É questão de preço. A juventude é uma meretriz: encanta, seduz, promete... mas sempre cobra caro. Hoje te embriaga, ludibria... amanhã te abandona. E então você rastejará, como tantos antes de você, oferecendo as últimas moedas da sua dignidade — em vão.

O viajante cerrou os lábios, mas não respondeu.

O barman serviu-lhe a última dose da garrafa. Depois, ergueu os olhos e disse com voz grave:

— Abra uma de suas mãos.

O viajante obedeceu. O barman, então, derramou um fio de água cristalina sobre sua palma aberta.

— E o que quer que eu faça com isso? — perguntou, confuso.

— Faça o que desejar: guarde, desperdice, dê a alguém, tente segurá-la... é sua.

O homem permaneceu em silêncio. Cambaleava levemente, não o bastante para tombar, mas o suficiente para perceber que fugira do seu estado natural. Instintivamente, fechou a mão com força, mas a água se esvaiu entre os dedos, desaparecendo antes mesmo de poder ser sentida.

Ele olhou para a mão vazia — e compreendeu.

— Quer outra bebida?

— Não... Minha viagem ainda é longa. Preciso me manter sóbrio.

— Você é quem manda.

Ele ajeitou a mochila nas costas e se preparava para sair. Mas, antes de alcançar a porta, seus olhos foram capturados por um canto escuro do bar. Ali, uma mulher imóvel, com o rosto velado por um tecido translúcido, aguardava em silêncio.

Diante dela, um tabuleiro de xadrez permanecia montado, peças dispersas em meio a um jogo já em andamento. Não havia pressa em seus gestos, tampouco sinais de impaciência — apenas a presença enigmática de quem sabe que, cedo ou tarde, alguém se sentaria diante dela para mover a próxima peça.

— Quem é ela? — perguntou, curioso e fascinado. — A jogada é óbvia...

O barman fechou os olhos, quase cansado.

— Não ouse subestimá-la. Algum dia terá a sua jogada, e mesmo assim... perderá. Mas essa, não lhe pertence.

O viajante estremeceu.

— Está me dizendo que...

— Sim.

— E você, não perguntei seu nome...

O barman deu de ombros.

— Alguns me chamam de inexorável, incorruptível, inflexível... democrático.

O viajante baixou os olhos.

— Cronos.

O barman apenas sorriu. O homem respirou fundo, como quem se despede de algo inevitável e novamente se virou para a porta.

— Tenho a sensação de que quando abrir essa porta, tudo lá fora estará diferente... como num sonho.

O barman inclinou-se sobre o balcão.

— Não está esquecendo nada?

O viajante olhou para trás. Sobre o balcão, inquieto, pairava o Destino.

Ele sabia. Carregava o peso da mochila, mas abandonar Destino seria condenar-se ao verdadeiro vazio.

Empurrou a porta pesada. 

Do lado de fora, a noite o recebeu com sua garoa fina, dissolvendo as luzes vacilantes da rua. Ele ajeitou a mochila, pronto para seguir, mas por um instante estacou: do outro lado, uma silhueta dourada atravessava a penumbra, cabelos como reflexo de um sol já perdido.

Não soube dizer se era ela ou apenas um capricho da memória. Piscou os olhos e a figura já se dissolvia no nevoeiro, como quem jamais tivera substância. Ficou com a impressão de um perfume breve, um arrepio que não se explicava... como a água que sentiu escorrer por entre seus dedos.

Seguiu o passo, apático, perdido em pensamentos que só a ele pertenciam.