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Conta-se que uma árvore se queixava, quando conversava com um jovem felino que a escutava atentamente - enquanto se servia dos pequenos frutos caídos - sobre a ingratidão dos bichos que viviam a se aproveitarem dela.

- Pois é, amigo Gato... No auge da primavera eles se reúnem é minha volta, bichos de todas as espécies: tem zebra, cavalo, macaco, elefante e até alguns répteis... É a maior festa que fazem aqui e isso dura por longos meses até a chegada do verão.

- Mas porque se queixa?

- Porque são mal educados, pois nada me oferecem... Vêm aqui e fazem a maior bagunça, dançam cantam, flertam... O que me indigna é que, na chegada da seca, ninguém é capaz de vir me servir um pouco d‚Äôágua sequer... Abandonam-me aqui e simplesmente se esquecem da minha existência, condenando-me, meses a fio, é solidão e é miséria.

No mesmo momento, enquanto escutava seu lamento, o gato escalava através de seu imponente tronco com o fim de se esgueirar entre seus galhos e se aconchegar em alguma sombra no alto, entre as copas.

- Creio que eles não fazem isso de propósito, dona Árvore... Estão apenas seguindo a natureza deles. Tem certeza que eles não trazem nada de bom?

- Tenho sim e já tomei minha decisão: a partir de hoje não mais produzirei frutos... Quero ver se esses bichos, daqui por diante, vão, ou não, dar conta da minha existência ao se depararem com a ausência dos meus encantos.

- E você é capaz de fazer isso, dona Árvore?

- Sim... Basta apenas selecionar os nutrientes mais específicos do solo e virar as folhas para baixo quando o Sol estiver a pino.

- Tem certeza disso?

- É o que eles merecem por serem tão ingratos.

E assim foi... Durante meses, a dona Árvore seguiu seu plano e, na chegada da primavera e das chuvas, permaneceu reclusa e comedida enquanto, um a um, os animais passavam por ela e se espantavam por ela não mais representar o esplendor de outrora e, por fim, desistiam e iam embora.

Porém, seguindo seu plano e, com o minguar das estações, inevitavelmente a dona Árvore se surpreende ao ver crescer em si, espinhos que surgiam de todos os lados. Foi uma surpresa, pois a dona Árvore não havia planejado aquilo e, naquele momento, viu-se acometida pelo pavor.

Com o tempo, suas últimas folhas se desprenderam e deram lugar a apenas galhos secos e escarpados que nem mesmo sombra eram capazes de produzir. Eis que o seu velho amigo felino reaparece:

- O que aconteceu, velha amiga? Onde estão seus frutos como de sempre?

- Algo deu errado, amigo... Algo que não fui capaz de prever.

Naquele instante, por puro instinto, o jovem felino se lança a escalar o tronco de sua velha amiga Árvore, como sempre fizera, e eis que se surpreende com seus espinhos. Ao ver-se machucado, com dor e sangrando, ele se vira e vai embora, também instintivamente e jamais retorna, visto que, a partir daquele instante, aquela velha árvore apenas perigo lhe representava.

Sussurram rumores de que a dona Árvore ainda viveu por longos e longos anos, até se dar conta, principalmente na chegada da primavera, do quanto sentia falta da companhia e dos tempos de alegria... Alegria essa, ofertada por aqueles que vinham se servir dela, mas que agora, festejavam e se esbaldavam em outras árvores distantes...

Conta-se também que, para a desgraça e ensinamento da dona Árvore, sue maior amigo, Gato, não foi capaz de sobreviver és infecções causadas pelos espinhos que encontrou quando, seguindo sua natureza, buscara nela um punhado de sombra, aconchego e um bom lugar para descansar.

***

O amor percorre, em primeiro, por aquele que o manifesta.

o aNTI-hERÓI.

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