Carrega na mente a obrigação do ofício.
Mais uma noite: Plantão na emergência.
No peito passeiam sons e versos, que brincam com o coração. Ele dá colo ao eterno menino que habita seu coração. Trouxe o violão, casa ocorra um intervalo.

Enquanto isso, rompe na madrugada a urgência de outro menino. Um ferido, febril e faminto. De muitas fomes.

Primeiros socorros: Sinais vitais — Desde quando está assim, mãe? Pelo menos uns três dias, responde ela. Se feriu na favela.

Tem se alimentado?  Doutor, hoje ganhamos biscoitos recheados. Uma vizinha compartilhou, ganhou da patroa. Isso como refeição do dia. (Banquete, balbucia baixinho a mãe)
Por isso, glicose verte na pulsão desta veia.
O menino doutor (porque todo jaleco branco assim denomina), percebe, desolado, o quadro de desnutrição. O corpinho magro repousa como que repousa da dor numa maca da emergência no posto de atendimento médico.

Tão ausente de infância. Tão ausente de vida e caminhos.

 Sim, suturamos sua carne magra e colocamos ataduras na pele ferida.

Como amenizamos as dores da fome e da equidade, pensa ele.

Sente o doutor, severos gritos latentes lhe ferindo a garanta. Sensação de impotência.

A madrugada torna-se silenciosa, depois das medicações.

O ofício implacável, chama à realidade outra emergência e mais outra..
O curador do corpo, não satisfeito, prescruta a alma do poeta, enquanto a madrugada dá uma folga às sirenes.
Abraça o violão e se permite chorar. Se assim bastasse, usaria suas lágrimas para amenizar as dores. Não basta, ele sabe.
Menestrel da madrugada desperta e se irmana à alma do menino na maca, adormecido por instantes.

Abraçando invisíveis meninos do mundo, sem sol, sem sal e sem pão, dedilha canções.
O coração de compaixão se reveste, enquanto imagina a infância, 

se desenhando num céu de utopia.

Na magia moram brinquedos, jorram risos e alimento. Um jardim perfumado de afeto e justiça.

Utopia.

 

 

Maria Luiza Kuhn 

(obrigada poeta Hang Ferrero pela inspiração)

Imagem IA