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Para quem já prestou atenção ao som da caneta deslizando sobre o papel, ao estalo das hastes da máquina de escrever cravando, letra por letra, sua presença na folha, ou mesmo ao som aveludado dos dedos que, suavemente, se acomodam sobre o teclado de um computador... certamente vai me compreender...

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Meu primeiro encontro verdadeiro com a escrita não foi mediado por imagens, nem por sons. Era apenas o silêncio das páginas e o sussurro das palavras impressas — como enigmas ancestrais atravessando séculos para me tocar. Lembro-me nitidamente de quando li, pela primeira vez, Canções da Inocência, de William Blake... 

"... Com o pedaço de bambu fiz uma pena 
para a água cristalina tingir
e escrevi canções de alegria serena
que qualquer criança gostaria de ouvir."
(W. Blake)

Foi ali, com aqueles versos aparentemente simples, que compreendi o quanto a escrita pode ser poderosa. Palavras que haviam sido escritas há mais de duzentos anos agora dançavam diante de mim, despertando algo que eu sequer sabia nomear. Não havia ilustrações, não havia trilha sonora. Apenas símbolos — e, no entanto, eles eram tudo. Eram chaves. E com elas, portas se abriram em minha mente e em minha alma.

Logo, compreendi que não havia arte mais encantadora do que aquela que, feita só de palavras, era capaz de despertar mundos inteiros dentro de mim.

Anos se passariam até que uma paixão — ingênua e arrebatadora como só as primeiras são — me conduzisse ao meu primeiro grande delito.

Eu tinha quinze anos e trabalhava como office boy. Na empresa, as antigas máquinas de escrever seriam substituídas por modelos elétricos. Foi quando notei uma delas, largada num canto escuro, esquecida como uma relíquia sem valor. Sabia que seria descartada em breve. E, antes que isso acontecesse, como quem resgata uma vítima da obsolescência, guardei-a na mochila — e a levei comigo.

É claro que, movido pelo impulso de escrever um livro, o jovem que eu era poderia muito bem fazê-lo à mão — ou até mesmo reservar um tempo extra, após o expediente, para usar as novas máquinas elétricas que agora ocupavam as baias do setor administrativo, às quais eu tinha livre acesso. Mas... havia algo simbólico naquela escolha. Como se, ao levar aquela máquina, eu estivesse começando um romance secreto — vivido nas madrugadas silenciosas, entre taças de vinho que mais tarde aprenderia a apreciar, e aventuras que só eu poderia narrar. Só nós dois, ela e eu.

Por fim e impetuosamente, surrupiei-a do destino de obsolescência e, com isso, selava minha aliança silenciosa com a escrita. Aquela máquina, que guardo até hoje, não era apenas um objeto: era um símbolo. Um marco do desejo indomável que nascia em mim de dizer o indizível, de nomear o invisível, de organizar o caos interno em frases que me ajudassem a compreender o mundo — e, sobretudo, a mim mesmo.

Levemos em conta que desde que os primeiros sinais foram gravados em tábuas de argila na antiga Mesopotâmia, a escrita tornou-se uma das mais sublimes invenções da humanidade. Aqueles registros, puncionados em cuneiformes, surgiram para contar, medir, registrar. Mas, ao longo do tempo, a escrita se libertou da função contábil e tornou-se poesia, memória, pensamento, eternidade. Tornou-se arte.

Escrever é muito mais do que colocar palavras em ordem. É organizar a alma. É construir uma ponte entre o que sentimos e o que o mundo pode compreender. Compreendi que o escritor é, por essência, um tradutor da existência, um curador da dor, um semeador de consciência. Seu papel é resistir à superficialidade do tempo, provocando reflexões que o atravessam.

Antes que se pense em "dom", desenvolver a escrita não é uma habilidade reservada a poucos: é uma arte treinável, lapidável, disponível. Exige esmero, escuta, silêncio. E, acima de tudo, exige compromisso. Compromisso com a verdade, com o cuidado e com o outro. Escrever é desenvolver não apenas a inteligência linguística, mas também a inteligência interpessoal — que reconhece o outro — e, sobretudo, a intrapessoal — que reconhece a si. Afinal, quem escreve para o mundo precisa, antes, ter aprendido a se ler.

Como psicólogo, compreendo com clareza o valor terapêutico da escrita, especialmente dentro de abordagens narrativas da psicologia, que entendem o sujeito como autor da própria história. Escrever é, antes de tudo, organizar a mente ao colocar em ordem o caos das emoções. Mas vai além da catarse: escrever é um gesto político, criativo e profundamente transformador. É pela escrita que imortalizamos o que seria apenas passageiro, que tornamos belo o que seria apenas dor, que devolvemos sentido ao que parecia sem direção.

Pobre daquele que atravessa a vida sem lhe atribuir o devido valor. E, antes que se apresse em dizer que “a vida é para ser vivida” — sim, concordo — acrescento apenas que ela se torna ainda mais plena quando se decide empunhar a espada, ou melhor, a pena. Porque quem se dedica a escrevê-la acaba por experimentar um sentido mais profundo da existência: passa a perceber as nuances, a notar a poesia oculta nas entrelinhas. Como escreveu William Blake, em suas Canções da Inocência e da Experiência: “Larga teu instrumento, flautista, e escreve uma história que todos possam ler.”

Por fim, hoje, escrevo não apenas para me aliviar — mas para iluminar. Para erguer pontes, provocar consciência e oferecer aquilo que o mundo raramente entrega: permanência. Quando me perguntam quando me tornei escritor, costumo dizer que foi ali — naquele galpão silencioso, na penumbra, entre o cão e o lobo, quando roubei uma máquina velha não apenas para salvá-la do esquecimento, mas para impedir que a minha própria alma, como ela, se tornasse obsoleta e esquecida diante do tempo, das efemeridades e das distrações do mundo.

Desde então, fui tomado por essa arte — e sigo, com ética, estética e paixão, comprometido com um ofício que, mais do que me pertencer, me atravessa. Escrevo por uma humanidade mais desperta, mais sensível, mais apaixonada.

Porque no fundo, escrever bem... é um ato de entrega e de uma paixão que te atravessa e contagia antes mesmo de tocar o outro.